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DUNKIRK – Cristopher Nolan


[Spoiler alert] Dunkirk – estreia em cinema, desde 20 de julho, em Portugal – representa o drama de guerra que recria o “espírito” ou «milagre de Dunquerque», conforme o epíteto batizado pelo carismático líder e primeiro ministro inglês Winston Churchill (1874-1965), por forma a enaltecer a resiliência, diligência e o altruísmo que, no contexto beligerante inicial da II Guerra Mundial (1939-1945), mobilizaram as tropas aliadas a par de alguns civis a desafiarem as adversidades e os perigos infligidos pela derrota contundente na violenta batalha anfíbia e aérea de Dunquerque – pequena cidade portuária na costa norte de França, nas cercanias do entreposto geoestratégico de Calais e rota de acesso ao Canal da Mancha –, decorrida entre 25 de maio e 4 de junho de 1940, no intuito de resgatarem e evacuarem mais de 338.000 soldados, de um total de 400.000 militares pertencentes aos exércitos francês, belga, polaco, dos Países Baixos e, sobretudo, do Império Britânico, conquanto o plano bélico de retirada, denominado de Operação Dínamo, estimasse o salvamento de apenas 45.000 combatentes da Força Expedicionária Britânica.


Na perspetiva histórica, o encurralar das tropas aliadas nas praias e porto de Dunquerque, por parte da Wehrmacht da Alemanha Nazi, resultou da concretização tática da Blitzkrieg, a guerra-relâmpago que, de forma rápida, surpreendente e por efeito dominó, permitiu ao III Reich invadir e ocupar os Países Baixos, a Bélgica, o Luxemburgo e o norte de França, em função da celeridade intrínseca à progressão imparável das divisões blindadas de Panzers, apoiada pela Luftwaffe, a força aérea Nazi, e consolidada pela infantaria a par das Waffen-SS, realçando-se o ápice entre o deflagrar das hostilidades atinentes à Batalha de França, a 10 de maio de 1940; a campanha vitoriosa das Ardenas, que demonstrou a obsolescência das fortificações da linha Maginot; o avanço em direção a Calais ou Canal da Mancha; e, por fim, o domínio completo da Frente da Europa Ocidental, desde meados de junho de 1940 até à derrota após o “Dia D”, referente aos desembarques da Normandia, integrados na Operação Overloard ou Batalha da Normandia, situada entre junho e agosto de 1944.

Em Dunquerque, tudo parecia concorrer para a aniquilação e consequente rendição das forças aliadas. Mas, de forma paradoxal, a efetividade do resgate dos contingentes militares, em particular os britânicos, deveu-se à interpretação mais conservadora da Blitzkrieg pelo general veterano Gerd von Rundstedt (1875-1953), que estacionou as suas divisões Panzers e confiou a resolução da batalha à infantaria e Luftwaffe. De todo o modo, seja por excesso de confiança na supremacia militar germânica, diretrizes equívocas do Fürher, Adolf Hitler, descoordenação inerente à reivindicação dos louros da vitória pelos diferentes ramos e comandos da Wehrmacht, ou simplesmente pura sorte, fator tantas e tantas vezes subvalorizado pela História, apesar das perdas irreparáveis de logística e arsenais, salvaram-se as gentes – malgrado as 80.000 baixas, 40.000 soldados capturados, além das perdas civis  – e prevaleceu o “espírito de Dunquerque”, que moldou a nossa era ou civilização ocidental, em termos da capacidade de sobrevivência dos Aliados, para, no porvir, resistirem e combaterem a opressão totalitária Nazi.
 
A longa-metragem Dunkirk, assente em factos reais e fidedigna ao contexto histórico, capta o ambiente hostil que fustigou a retirada das tropas aliadas, quer pelo fogo cerrado da infantaria ou artilharia no porto e praias adjacentes, quer pelo bombardeamento intenso da Luftwaffe ao cordão marítimo formado por contratorpedeiros a par de alguns navios mercantes, barcos de pesca, veleiros e iates de recreio ou pequenas embarcações civis que se mobilizaram para resgatar e evacuar os combatentes para a cidade portuária inglesa de Dover, localizada no outro extremo do estreito do Canal da Mancha, aliás, a urbe do sudeste da Grã-Bretanha, margeada por icónicas falésias brancas, acolheu o centro de comando da Operação Dínamo.

 
Ação, drama e História, Dunkirk consubstancia uma exímia experiência audiovisual partilhada que retrata a guerra total através do enfoque trífido fragmentado. Em terra, nas praias, durante cerca de uma semana, constatamos o suplício com que os soldados aliados se debateram para sobreviver aos atiradores e morteiros nazis. No mar, ao longo de um dia, assistimos à audácia de uma das embarcações civis que acorreram ao caos bélico de Dunquerque. No céu, em termos da panorâmica global, a longa-metragem demonstra com grande acuidade sensorial os duelos picados entre os caças da Royal Air Force (RAF) e a Luftwaffe, na tentativa de conter o bombardeio desolador, aspeto que, no tempo diegético equivalente a sensivelmente uma hora efetiva, se conglomera com a perspetiva mais pessoal a bordo do Spitfire pilotado por Farrier, mero aviador interpretado por Tom Hardy, um dos atores-fetiche de Cristopher Nolan.
 

Na essência, Dunkirk destaca-se pela atmosfera imersiva e sinestésica, quase como se estivéssemos na frente de batalha, embora se distancie pela positiva da carnificina ou banho de sangue exibidos por filmes similares recentes, tal como o biopic, de estilo hagiográfico, Hacksaw Ridge. Por seu turno, a banda sonora, novamente dinamizada através da parceria proficiente com o notável compositor Hans Zimmer, catalisa o ambiente épico e, de forma consistente, estrutura os momentos de suspense e tensão. Mais. O realismo ou verosimilhança permanecem como atributos da realização e montagem de Cristopher Nolan, apesar de as bases de comparação personificarem filmes algo distantes da realidade, como, por exemplo, a fantasia do universo BD inerente à trilogia Batman Dark Knight (2005-2012), a aventura telúrica e labirinto de Inception (2010), ou o prodigioso drama de ficção-científica Interstellar (2014).

Em Dunkirk, as imagens falam mais do que qualquer situação dialógica, até porque o pecúlio realista advém, em grande medida, das filmagens in loco, nos lugares e paisagens que, há 77 anos, serviram de campo de batalha, além da utilização de aviões, artefactos, entre outros meios técnicos de época. Por meio da riqueza de pormenores da fotografia, fotogramas, frames, da profundidade dos cenários reais em reciprocidade com os efeitos especiais e a composição virtual, mais a versatilidade da banda sonora e diálogos curtos, a longa-metragem dota-se de cariz intuitivo, evoca mesmo a lógica do cinema mudo, representando a plataforma intimista perfeita para a reflexão axiológica dramática sobre o significado e legado para a Humanidade do “espírito” ou «milagre de Dunquerque». Nessa medida, é difícil apontar defeitos. Eventualmente, a lógica cinematográfica é demasiado não-linear e conotativa, pelo que a fruição do enredo depende da perspicácia e valências culturais do espectador, até porque se demarca da heroicidade bacoca para conferir relevância às experiências – testemunhos disponibilizados pela História Oral e História do Tempo Presente – tanto coletivas como individuais de combatentes e civis anónimos, aliás, as personagens verosímeis representadas pelo elenco algo indistinto, à parte do estrelato, fazem jus a tal característica, apesar de Cristopher Nolan não abdicar de se servir de atores-obreiros da sua confiança, concretamente Tom Hardy e Cillian Murphy.
 

Dunkirk sublima a sétima arte, revisita o prestígio dos filmes de culto dos anos 50 e 60, concilia a inovação técnica com os atributos mais clássicos da cinematografia, sobretudo por interligar o formato conservador de 70 mm com as potencialidades e amplitude visual do IMAX. No global, Dunkirk, de Cristopher Nolan, logra a magnitude de uma odisseia apocalíptica sobre a II Guerra Mundial, disposta num retrato realista, dramático e intimista que ressuscita a História e incita à resiliência, cuja qualidade hedónica e inteligibilidade dependem da capacidade intuitiva de olhar, sentir e valorar do espectador.

CA

Comentários

Unknown disse…
Super boa resenha. Eu devo dizer que pessoalmente gostei deste filme. Eu acho que é muito bom. Gosto do gênero e foi uma surpresa pra mim, já que foi uma historia muito criativa que usou elementos innovadores. Agora é um dos meus Christopher Nolan filmes favoritos por que além de ter uma produção excelente, tem uma boa história. Seu trabalho é excepcional, seu estilo e personalidade estão bem marcados neste filme, acho que ninguém teria feito um melhor trabalho que ele. A verdade merecia um Oscar. É uma historia que vale a pena ver.
Unknown disse…
Genial! Para mim foi a melhor do gênero. Christopher Nolan como sempre nos deixa um trabalho de excelente qualidade, sem dúvida é um dos melhores diretores que existem, a maneira em que consegue transmitir tantas emoções com um filme ao espectador é maravilhoso. Dunkirk é um filme com un roteiro maravilhoso. É um filme sobre esforços, sobre como a sobrevivência é uma guerra diária, inglória e sem nenhuma arma. Dunkirk elenco também foi maravilhoso. É uma produção que vale a pena do principio ao fim. É um exemplo de filme que serve bem para demonstrar o poder do cinema em contar uma história através de sons e imagens, que é, diga-se de passagem, a principal característica da sétima arte.

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