Certos filmes possuem um toque mágico! Exercem fascínio e sedução, a ponto de se tornarem assunto de pleno direito em conversas de café que, em tom e conteúdo, variam desde o frugal até ao mais puro dos axiomas. É esse poder que me induz a escrever ou comentar algumas longas-metragem. Depois de as vermos, não conseguimos ficar calados, queremos explorar mais, ir mais além... Não porque me considere bom crítico de cinema ou um invertebrado cinéfilo... Tudo se deve à intensidade ou magnetismo com que determinado filme cativa os sentidos e a mente.
Inception enquadra-se nessa categoria, entre o conjunto daqueles filmes que não queremos esquecer, que não nos importamos de recordar, rever e falar, falar muito sobre eles, bem como discuti-los, debatê-los e fazer o melhor dos panegíricos ou o mais solene encómio.
Inception alicia a mente, desafia a inteligência, cativa a atenção ao mais ínfimo dos pormenores, assim como testa a par e passo a concentração. A cadeira de cinema transforma-se em divã freudiano e partimos à aventura no mundo onírico numa experiência partilhada.
Cobb – Leonardo DiCaprio – lidera uma equipa especializada em vigilância mental, que age no mundo dos sonhos, cujo método operativo consiste num processo de partilha de camadas de sonhos por meio dos quais ele e os respectivos comparsas conseguem alcançar o inconsciente do individuo vigiado, com o fito de extrair determinada ideia. O sujeito visado em tal operação é sedado e induzido no sono, sendo posteriormente conduzido pelos diferentes membros da equipa a um ou vários sonhos, de modo a alcançarem o objectivo de extracção. Contudo, no enredo de Inception, o desafio é ainda mais difícil, na medida em que a missão principal consiste na implantação de uma ideia através dos sonhos, experiência nunca tentada.
A "brigada" multifacetada de vigilância mental compõe-se por um arquitecto, que concebe e projecta os cenários onde os sonhos decorrem; um falsificador, que mimetiza comportamentos de pessoas próximas do visado, capaz de se fazer passar por qualquer indivíduo; um químico, que fornece e administra os soníferos ou psicotrópicos; mais dois vigilantes que, de forma mais directa, participam na acção, um com a função de extrair ou implantar a ideia no sujeito, outro como backup para o que der e vier, nomeadamente lutar contra as projecções de defesa da mente do visado, caso existam, ao que acresce propiciar os "empurrões" necessários para os diferentes membros da equipa ascenderem pelos níveis e camadas distintas de sonhos partilhados até alcançarem novamente a realidade.
O verdadeiro desafio de Inception consiste em interpretar e distinguir os momentos sonhados dos momentos reais. Eventualmente, o único fio condutor fidedigno concerne ao acordo entre Cobb e Saíto, porque desse ato advém toda a acção, tanto a sonhada como a vivida.
O filme termina com a mesma cena do início, conferindo aso à ideia de que toda a intriga radica no sonho projectado a partir das memórias, recordações e diversas camadas de sonhos do protagonista Cobb. Mais. É plausível que toda a acção e aventura decorram da tentativa de regresso de Cobb do seu limbo.
Nesse contexto, porventura a única cena real resume-se ao embarque para a travessia aérea entre Sydnei e Nova Iorque, por forma à equipa – liderada por Cobb – realizar a missão de implantar determinada ideia na mente do herdeiro do maior oligopólio energético do mundo, concretamente Robert Fischer.
A intriga fornece a hermenêutica que permite distinguir entre os momentos telúricos e os vivenciais. Cada membro da equipa possui um totem ou objecto personalizado. No universo telúrico, esse artefacto está permanentemente em movimento, nunca pára, enquanto na vida real, acaba por ceder à inércia ou gravidade. O objecto de Cobb é um pião. É intrigante a última cena. Cobb gira o seu pião, a cena fecha sobre o pião a girar e cai o black screen, ouvimos o som do pião a abrandar, mas não sabemos se acaba por parar ou não. É essa a dúvida que fica. Afinal tudo não passou de uma sucessão de vários sonhos partilhados, os quais se integram na mente e no inconsciente de Cobb, enquanto superestrutura da metanarrativa, ou, de facto, existe o retorno à realidade e cumpriu-se o acordo entre ele e Saíto?
Claro que podemos entrar no universo do paradoxo, ideia amplamente explorada pelo filme. À primeira vista, a última cena é igual à de abertura, mas no paradoxo, o óbice parece em tudo igual ao preâmbulo sem o ser. Na verdade, está um nível acima e uma vez transposto, leva-nos a cair novamente para o princípio.
Com a intriga ao nível de um Hitchcok, acção e aventura similares aos melhores filmes de James Bond, um conceito dramático e de entretenimento que sugere algo da índole de Matrix – embora seja injusto rotular e colar Inception a essa trilogia, visto que é muito melhor e mais profundo –, assim como interacção emocional digna dos melhores divãs freudianos e pavlovianos, mais a atmosfera psicológica bastante imersiva, em razão de nos arrebatar na viagem através dos fantasmas existenciais do protagonista a par e passo com as cenas de maior acção, Inception é sem sombra de dúvida o ex-libris deste verão.
Nota final para Leonardo DiCaprio, que, desde The Departed, passando por Body of Lies e Blood Diamonds, até chegar a Inception, se converte cada vez mais num actor de qualidade certificada.
CA
Comentários