Avançar para o conteúdo principal

BOOK OF ELI – Denzel Washington

Eis-nos caídos num Apocalipse nuclear. Uma espécie de 3.ª Guerra Mundial despoletou tamanho desiderato. 
A sociedade desagregou-se vivendo no caos e anomia. O instinto de sobrevivência mantém os que restam vivos, organizados sob a forma de bandos e pequenas urbes acicatadas e dirigidas pela égide de uns quantos caudilhos.
Tal cenário afigura-se rocambolesco, hardcore e desolador. 
Deformações físicas, deserto e avareza nuclear, violações, barbarie, vendeta, banditismo, rapina e canibalismo estão na ordem do dia.
A água potável e as suas fontes converteram-se no novo ouro negro. Diversos bandos e caudilhos disputam o seu controlo e fazem negócio com quem a pode pagar a preço de ouro. Por outro lado a irradiação nuclear tornou a visão num dos sentidos mais escassos, sendo poucos aqueles que a conservam e usufruem... Idiossincrasias tecnológicas surgem em tom quase caricatural. Por exemplo o ipod convive lado a lado com o gramafone. Entre arcaísmos e anacronismos o próprio Book of Eli, considerando a sua encadernação, afigura-se a um
códice incunábulo.

A Humanidade vive dias de decadência periclitante. Todos os valores civilizacionais se evanesceram. No que poderia muito bem ser o dizer de Th. Hobbes regredimos para uma sociedade e economia em estado primitivo ou natural. Troca por troca, favor por favor, lei de talião, strugle for life perfazem a axiologia imperante.
É neste contexto que surge Eli, uma espécie de eremita que viaja caminhando e sondando por vestígios da sociedade e civilização perdida de Th. Hobbes, transportando consigo um livro misterioso, muito cobiçado do qual é guardião, protegendo-o com a sua vida se necessário. Uma espécie de áurea divina inflama e ala a sua missão.

Tal livro é um exemplar da Bíblia. Duas cosmovisões para com Ela. A de Eli que a vê como fonte de sabedoria, felicidade, verdadeiro progresso e a pedra angular dos fundamentos para relançar a civilização, e ao invés, a sustentada por um caudilho que A busca pois Essa "contém as palavras que as pessoas querem ouvir!" procurando usá-la para exercer tirania, arregimentar e invocar cruzadas de modo a expandir o seu domínio e controlo territorial. Em duas palavras, uma é humanista e a outra despótica.
Essa procura exasperada da Bíblia, tanto por uma visão como por outra parece realçar o seu valor e carácter intemporal e cíclico. Com efeito, numa era apocalíptica nada como voltar a reencontrar o Génesis. Tal pecúlio parece ser o móbil do seu guardião e salteadores.
Passagens do livro de Salmos, epístolas de Paulo e outros excertos dos Evangelhos, entre os quais o relato da Criação, tem lugar de citação e recitação.

Eventualmente Eli consegue alcançar o último reduto e bastião civilizacional em Alcatraz, São Francisco. É ai que entrega o seu exemplar da Bíble of King James para ex-libris, a constar lado a lado com outras obras culturais cuidadosamente curados e arquivados numa espécie de Arca-Museu à espera de novo uso. A Bíblia cintila como património maior em redor de outras obras artísticas como Mozart, Descartes, Kant, Bach, etc...
A este propósito, o filme aproveita a oportunidade para lançar a questão da Bíblia relíquia – uma espécie de arca da aliança, protegida e escondida de tudo e todos e só manuseada por uns quantos – versus a Bíblia como prática e guia ético e vivencial.
Ironia das ironias, a versão do exemplar de Eli é em braile. Eli recita a Bíblia box-to-box de forma decorada – pois acaba por ficar cego – para que o Cura num trabalho autêntico de monge copista a manuscreva para futura impressão no prelo. Por vezes lemos, mas não vemos o que está escrito. O filme acaba por recorrer à exploração da ideia da cegueira em sentido lato.

A tese do filme poderia muito bem ser a de que o fundamento da civilização não é a economia nem a força ou poder, mas sim a cultura. É ela que verdadeiramente nos protege. De tal facto advirá o simbolismo da cidade de São Francisco convertida na última pária civilizacional cujo a missão de relançar as bases culturais faz jus aos pressupostos históricos e simbólicos que remetem para a Ordem mendicante de S. Francisco.

Numa análise às influências de pensamento e para concluir, o filme situa-se claramente na linha das distopias a par de alguns aspetos das utopias de fim de século nos ditames de um Al. Huxley ou G. Orwell, com críticas à sociedade pós-moderna, recuperando tradições irracionais medievais entre as quais todos os motivos catárticos e ex-votos da ars moriendi e a cosmogonia associada à ideia escatológica do mundum senescit, o mundo caminha para o abismo e decadência. Curiosamente não há espaço para o ecumenismo. O que parece valer é a unidade de tudo, a começar pelo valor da Bíblia, sem associação a qualquer denominação, uma ideia, não obstante, um tanto ó quanto Luterana: sola scriptura.

CA

Comentários

Mensagens populares deste blogue

AVATAR 3D – James Cameron

  AVATAR não é apenas mais um filme. É o filme! Em todos os pormenores e domínios é completo e quase perfeito. Claro que me refiro à versão 3D. Comecemos por esse ponto. Durante todo o filme conseguimos sentir e ver a profundidade de toda a cenografia, em todos os takes , frames , tudo está concebido ao mais ínfimo detalhe para impressionar os sentidos. Igualmente impressionante são os traços ambientais que parecem transportar-nos para dentro do próprio cenário, sejam as paisagens ou a envolvência da geologia – montanhas flutuantes – fauna e flora do planeta PANDORA ou todas as cenas de combate e acção que se desenrolam. Para os mais sensíveis a profundidade dos cenários com altos declives e altitude chega mesmo a fazer vertigens. Simplesmente fantástico! Referência ainda para os soberbos hologramas, menus e interfaces electrónicos dos computadores da era de exploração espacial em que o filme se desenrola, o que de facto confirma a predilecção e gosto que a ficção científica e...

GERAÇÕES Y E Z – Reflexão

Image by Top 10 website Millennials e Zappers , as gerações do pensamento em mosaico e, supostamente, multitarefa, eufemismo que caracteriza o etos – forma de ser ou estar – próprio de quem deixa tudo pela metade, a começar pelos relacionamentos. A Geração do Milénio (Y) e os seus descendentes, a Geração Zapping (Z), demarcam-se da monotonia dos compromissos para viverem a crédito das aparências, sobretudo face a competências académicas, profissionais e socio-afetivas supostamente inatas ou adquiridas, que, de facto, não dominam.   No limbo digital web em que a Generation Me insufla egos, globaliza narcisismo bacoco, imersa na qualidade erógena de cliques, likes , emojis , efeito viral e K-idols , nem tudo consubstancia defeitos, destacam-se algumas virtudes. Aparentemente ecorresponsáveis e ativistas interculturais, estas gerações exibem solidariedade, nomeadamente se esse altruísmo fomentar a voracidade pela partilha de selfies . Fetichistas dos emoticons , regressam à...

ENTRE SÉRIES DE TV E "OUTRAS COISAS..." – 2013

Um pequeno post para partilhar breve s sinopses em jeito de comentário sobre as séries de TV que considero mais interessantes na atualidade . Game of Thrones Ficção e literatura rodadas em imaginário medieval , com cenografias – film adas e gravadas na Irlanda – bem ao estilo de O Senhor dos Anéis . Várias linhagens de famílias nobres lutam pela supremacia e domínio do Iron Throne .  Entre cavaleiros, bastardos, dragões, undeads , ligas e irmandades, cenas de "gesta" e "trovas" encenadas ao jeito de "cinema de autor", destaque para a personagem Tyrion Lannister , o anão interpretado brilhantemente por Peter Dinklage , realçando a sua feição jocosa e arguta no seio de um elenco de luxo que serve um banquete de civilizações de roupagens medievais com alusões a romanismos, goticismos, islamismos, misticismos célticos e bárbaros. The Borgias Série de rigor histórico e romanceada na dose certa. Faz ju s ao seu sub-título: The ...