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THE LORD OF THE RINGS – Da Ficção à História


Comentar a trilogia cinematográfica Lord of The Rings é sinónimo de estabelecer diversas analogias, comparações e referências.
A primeira referência a ser feita é Tolkien – John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) – autor dos livros O Senhor dos Anéis. Foi filólogo e professor de Literatura Britânica na Universidade de Oxford entre 1925-1959. A sua obra manifesta ecos da sua formação e vocação académica e científica, assim como da sua paixão pelo místico e Mitologia Asgardiana. Sem dúvida alguma que Tolkien é um dos pânditas e eruditos que merece o titulo de criador in partibus da Literatura Fantástica da Modernidade.
A segunda referência é mais contemporânea e do foro da multimédia e realidade virtual. Trata-se de um video-jogo que é em tudo propedêutico aos filmes e aos livros a começar pelas raças: Orcs, Humanos, Undead e Elfos. Falo de WARCRAFT.

Mas vejamos as aportações para as quais o sucesso cinematográfico nos transporta. Toda a cenografia matiza e transmite o imaginário da mitologia céltica e Asgardiana, se preferirem da mitologia profana com larga tradição e proliferação nos países do Norte da Europa. Nesta mitologia o inferno não é feito de fogo e labaredas mas sim de gelo. Do primeiro para o segundo episódio Gandalf após enfrentar o demónio de fogo (Balzrog) acaba por ficar preso num deserto de gelo, local mais que apropriado para um feiticeiro, anacoreta ou alcolita procurar a sua transcendência e desenvolver os seus poderes xâmicos, tornando-se mais sábio e forte após tal experiência de katarsys e ascese. No segundo episódio confirma-se que de facto tal travessia do deserto o tornou mais forte, já não é Gandalf o cinzento, mas sim Gandalf o branco!

O filme não se desenrola em nenhuma diegese ou tempo histórico real, mas por antonomásia e idiossincrasia podemos dizer que tem equivalência histórica com a Alta Idade Média Inglesa, mais propriamente com o século IX e o ano 1000. No filme temos três grandes reinos: Minas Tirith, Gondor e Mordor. Os dois primeiros são apresentados como fazendo parte da Terra Média, que é muito disputada pelo reino de Mordor. No século IX a XI, na actual Inglaterra existiam também três grandes reinos: Wessex, Danelaw e Mercia, sendo que o Danelaw, também conhecido como Terra Média era a terra mais cobiçada quer pelos autoctones quer por invasores do Norte da Europa, entre os mais ilustres e sádicos, os Vikings!

Há necessariamente que fazer uma aportação entre o filme e a História da Arte e do Urbanismo. As cidade de Minas Tirith é o tipico exemplo de um Principado, Ducado ou Condado Feudal alto-medieval. Já a cidade de Gondor caracteriza-se pelas muralhas em estilo Românico e pela arquitectura gótica dos seus edifícios, palácios e necrópole. São cidades medievais, mas com orgânica e urbanismo próprios da pólis greco-macedónica ou comuna medieval italiana. Em ambas o Palácio e Cidadela em seu redor localizam-se na zona mais elevada da cidade e têem a função de Ágora e Acrópole. Interessante é o facto de não existirem Catedrais ou Igrejas, mas os Palácios quer no frontispício quer em termos arquitéctónicos gerais serem caracterizados como edifícios religiosos. O Palácio de Minas Tirith tem tanto de Parthenon como de Basílica, e o Palácio de Gondor é uma perfeita Catedral, a fazer lembrar a de Canterbury.
Destaque para o interior dos palácios. Ambos são de cunho islâmico-bizantino: espaços amplos, angulos verticais, colunas e arcos bizantinos, mármores, alabastro e decoração simples com pouca ornamentação. Os edifícios Bizantinos e islâmicos eram concebidos a pensar na utilidade e no conforto, por outras palavras, eram concebidos para serem habitados, e no Senhor dos Anéis, quer no Palácio de Minas Tirith quer no de Gondor tal pecúlio está presente.
Já a cidade de Mordor é perfeitamente gótica e gargulesca, própria para ser habitada por demónios e seres do mundo das trevas e do oculto... quase que se estabelece uma relação umbilical e orgânica entre os seus habitantes e a sua arquitectura.
O megalomanismo é transversal a todas as cidades como não poderia deixar de ser, tratando-se da adaptação a cinema de uma obra da esfera da literatura fantástica.
Ainda no que diz respeito à arquitectura, há que destacar o valor simbólico das Torres. Na Europa Feudal e Senhorial medieval a Torre era símbolo e manifestação do poder dos nobres dentro do seu feudo e ao mesmo tempo era um instrumento de controlo e vigilância dos que lhes estavam subjugados. No filme as Torres, em especial a de Mordor, também surgem dotada dessas características, por um lado são símbolo de poder, e por outro instrumento de controlo e vigilância quase omnisciente de tudo aquilo que se passa e acontece nas suas imediações ou reino.

No filme o poder religioso não surge associado a nenhuma ordem ou edifício. Trata-se de um poder religioso de origem pagã ancestral, representado pelos feiticeiros que podem praticar as artes da Magia Negra (Saruman: O Mal) ou da Magia Branca (Gandalf: O Bem).
As aventuras da Irmandade são próprias da literatura de Gesta medieval, bem ao estilo de La Chanson de Roland, bem como da Matéria da Bretanha ou Circulo Arturiano. A organização dos heróis do Senhor dos Anéis em Irmandade é uma forma de associação tipicamente medieval que consagra a reunião de vários poderes numa mesma demanda – o poder xâmico (feiticeiro), o poder guerreiro (Aragorn, Boromir, Faramir, Legolas, Theodred, Theoden) e o poder da crença, isto é dos peregrinos, largamente representado pelos quatro Hobbits. Tal forma de associação foi muito utilizada durante a Reconquista na Península Ibérica (sécs. VIII-XV). Tal organização de poderes catapulta-nos para a doutrina da trifuncionalidade social medieval gizada por Adalberão de Laõn e Gérard de Cambrais.
Os guerreiros já enunciados, regem-se notoriamente por um Código de Cavalaria, onde a honra, a bravura, a coragem e a solidariedade e companheirismo de armas e uma boa dose de intrepidez estão sempre presentes. A nível social, o relacionamento entre Homens é do foro do ritual e códigos de cavalaria e vassalagem. Já o relacionamento e comportamento com as Mulheres (visível sobretudo nas personagens Aragorn e Faramir) é próprio do amor e modo cortês, bem como do jogo de fine amore.
Estes guerreiros são ainda heróis do tipo Homérico mas medievalizados: Lideres por natureza, são estereotipo e exemplo para os seus colegas de armas e para os neófitos. São eles que estabelecem a axiologia guerreira e cortesã e o seu exemplo e heroicidade evitam a anomia e anarquia no seio das suas gentes/povo.

A própria viagem que a Irmandade enceta para destruir o anel miscigeniza o género de viagem e epopeia Homérica com o estilo de viagem da Canção de Gesta e o Espírito de Cruzada: Dragões, aranhas, criaturas das trevas, guerras e carnificinas opõem-se aos intentos da Irmandade, conferindo a tal périplo a dimensão de aventura Alexandrina ou Cruzada medieval.

Ao nível do armamento constata-se que o Rei Theoden (de Minas Tirith) usa uma espada e armadura carolíngia, ou seja, ao mesmo tempo arma e ornamento. Já a espada de Aragorn "Andoril" é céltica: longa, esquia, de vértice e gume afiado, com punho em cruz teutónica. O valor que o filme deposita nas espadas é algo tipicamente céltico. Em determinado take, Aragorn (episódio III) após a batalha de Gondor crava a sua espada na terra e ali a deixa sozinha a balançar. Tal atitude era típica dos War Chiefs célticos após as batalhas. Aliás o simples facto de as espadas terem nome (ex. Narsil, Andoril, a Ferrão etc...) prova a influência céltica. Não obstante a "ferrão" espada de Frodo é um típico gládio romano, arma de vocação estritamente defensiva.

Em relação às raças, analisando-as num plano mitológico e fantástico podemos afirmar que todas elas cumprem as suas funções e exibem as suas características. Os Elfos que vivem em perfeita harmonia com a natureza (a cidade de Rivendell prova isso mesmo, bem como a cidade floresta da Dama do Lago Galadriel). Os Elfos são ainda conhecidos pelos seus poderes curativos e taumatúrgicos, telepatia e adivinhação (tais características surgem bem vincadas nas personagens élficas de Galadriel e Elrond). São peritos no uso do arco e flecha (a personagem Legolas comprova isso mesmo). São ainda exímios na forja e na arte de criar espadas (ex. Andoril forjada com restos da Narsil em Rivendel pelo Mestre Elfo Elrond). Já os anões (Gimli) são conhecidos por viver em comunidade nas cavernas, serem exímios mineiros e pela sua espirituosidade e bravura guerreira. Os anões possuem ainda um imenso fascínio por fadas e feiticeiras! Tal é visível na cena em que Gimli (episódio I) pede um fio de cabelo como recordação à Dama do Lago Galadriel. Os anões são ainda rivais salutares dos Elfos (como comprova a amizade entre Legolas e Gimli). Relativamente aos Orcs são criaturas produto de eugenia e que veneram e são tutorados por demónios: existem vários tipos de Orcs – Goblins, Rats e Urukai – e todos tem em comum alimentarem-se de carne humana. Há ainda os espectros, vultos e demónios conhecidos pelos seus poderes dizimadores, hilicos, nefastos e pelo seu modus vivendi ou ars morti mórbido e grotesco e imortalidade (Undead). Por último há que destacar essa personagem colectiva que é a Floresta, representada por sinédoque pelos ENTS, e que quer no filme quer ao longo de toda a Idade Média eram locais considerados como espaços de retiro para anacoretas e feiticeiros; local selvagem e inexpugnável, mas também um local que deveria ser tratado com consciência ecológica pois a subsistência humana dependia do mesmo: a regra era preservar muito e destruir se estritamente necessário para ganhar terras para a agricultura, que geralmente eram os baldios, ou seja, territórios de bosque, mas sem grande vida vegetal.

Ainda espaço para uma referência às inspirações Biblicas. Refiro-me ao pão elfico semelhante ao "manah" do livro de Êxodo, aos bordões de Gandalf que não são ceptros xâmicos e de feitiçaria, mas sim varas de índole Bíblica, a árvore do rei em Gondor que floresce quando esse regressa, numa possível alusão à passagem Bíblica em que a vara de Arão floresce e, por fim, não posso deixar de comparar certas personagens, Aragorn a Saul (embora muito Guilherme Tell no visual), Frodo a David, Faramir a Josué e Gandalf a Moisés (numa referência mais pagã Merlin).

Um último aspecto que realça a medievalidade de O Senhor dos Anéis é o seguinte facto: Enquanto que na Antiguidade Clássica os símbolos do poder eram a coroa e o ceptro, na Idade Média esses símbolos são o anel e a espada.

Por tudo isto se pode afirmar que caso O Senhor dos Anéis se desenrolasse num tempo Histórico tal situar-se-ia na Alta Idade Média que foi a época de transição e síntese entre o Mundo Antigo (Grécia/Roma) e o Mundo Medieval.

CA


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